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Chapter 35 - O Limiar do Treinamento e o Calor do Lar.

Os dias que se seguiram ao retorno da capital foram marcados por uma calma enganosa no Feudo Freimann. A poeira da viagem assentara, assim como as emoções mais turbulentas da Apresentação Quinquenal e da visita à imponente Academia Arcana Real. A rotina tranquila do feudo tentava se restabelecer, mas pairava no ar uma expectativa palpável, uma quietude antes da tempestade de treinamento que se avizinhava para o jovem Elian.

Essa tempestade chegou personificada na figura da da sua avo Margareth Lindemberg. Sua carruagem, embora desprovida de ostentação, emanava uma aura de poder contido ao parar no pátio da mansão numa manhã ensolarada. Margareth desceu com sua postura ereta e olhar penetrante, sua simples presença alterando a atmosfera do lugar.

Sem perder tempo com formalidades excessivas, reuniu Lucius, Maria, Elian e a pequena Vivian na sala de estudos. Ali, entre mapas do feudo e registros familiares, ela desenrolou um pergaminho que detalhava o futuro próximo de Elian – um futuro de esforço implacável.

— Cinco anos — declarou Margareth, sua voz calma, mas ressoando com autoridade, dirigida a todos, mas com os olhos fixos em Elian. — É o tempo que temos para prepará-lo para ingressar na Academia aos onze anos, conforme a exceção concedida pelo Diretor Aldebrand. Não será fácil. O regime que você conheceu até agora será intensificado exponencialmente.

O pergaminho revelava um cronograma brutal: condicionamento físico extenuante antes do amanhecer, meditação para expansão de mana, prática exaustiva das três afinidades elementais – aprimorando o controle fino do Fogo, solidificando a conexão instável com a Terra e aprendendo a guiar a natureza fugaz do Ar. Teoria arcana avançada, táticas de combate, estudo de runas, combate simulado... a lista parecia interminável, um testemunho da rigidez que a esperava.

— O foco principal — continuou Margareth, apontando para uma seção específica do cronograma — será iniciar e consolidar a elevação de sua Runa da Centelha. Você alcançará o Nível Chama antes de pisar na Academia. É um requisito não negociável para que você tenha alguma chance contra alunos mais velhos e experientes.

Nível Chama. O terceiro estágio na hierarquia das Runas, um salto significativo em poder e controle. Lucius e Maria trocaram um olhar. Ambos conheciam a dificuldade e a dor envolvidas na elevação de uma Runa, mas assentiram. Sabiam que era necessário para o futuro de Elian.

Elian, sentindo o peso daquelas expectativas, endireitou os ombros. A imagem de Belle e a promessa que fizeram deram-lhe força. — Eu farei, Mestra.

Antes que Margareth pudesse prosseguir, Maria interveio, sua voz suave, mas firme. — Mestra Lindemberg, Lucius... Elian. Este caminho é árduo, e ele o seguirá com determinação, eu sei. Mas ele ainda tem apenas seis anos. Antes de mergulhar nesta rotina esmagadora, não poderia haver... uma pausa? Alguns dias para que ele possa simplesmente respirar, estar conosco, fortalecer os laços que o sustentarão?

Lucius apoiou a esposa imediatamente. — Maria tem razão. Uma breve pausa para recarregar as energias antes do início formal deste novo regime seria benéfico. O que acha, Vovó?

Elian, ouvindo as palavras da mãe, sentiu um alívio profundo. Ele olhou para os pais, para a irmãzinha que o observava com curiosidade. — Sim — falou, sua voz firme. — Eu quero ficar mais forte. Quero ir para a Academia com a Belle e cumprir minha promessa. Mas... não quero abandonar minha família para isso. Este tempo... é importante.

Um sorriso genuíno, quase suave, iluminou o rosto normalmente severo de Mestra Margareth. Era um sorriso feliz, mas havia uma camada de melancolia em seus olhos que poucos notariam.

“Ele valoriza isso...” pensou Margareth, observando o neto. “Ele entende, mesmo tão jovem, o que eu só percebi tarde demais.” A imagem de sua própria mãe, um rosto gentil perdido nas brumas da memória, surgiu brevemente. Ela tinha apenas quatro anos quando a perdeu, e a dor e a raiva a impulsionaram a buscar poder acima de tudo. Família tornou-se um conceito distante, uma fraqueza a ser superada em sua escalada implacável. Vendo Elian ali, tão determinado a ficar forte, mas igualmente resoluto em manter seus laços familiares, despertou nela um calor inesperado, uma pontada de orgulho misturada a um antigo arrependimento. “Talvez ele consiga... talvez ele encontre o equilíbrio que eu perdi.”

— Uma pausa, então — concordou Margareth, sua voz voltando ao tom habitual, embora talvez um pouco mais suave. — Alguns dias para fortalecer outros laços antes de começarmos a forjar seu poder.

Nesse momento, seu olhar aguçado pousou em Vivian. A menina, talvez sentindo a atenção, franziu o narizinho, e por um instante efêmero, dois pequenos riscos ondulados, como névoa translúcida, brilharam fracamente sobre o dorso de sua mão antes de sumir.

Os olhos de Margareth se estreitaram em reconhecimento. — Ah... Então a pequena também ouviu o chamado. Nível I – Bruma. A alma adormecida, o primeiro passo no caminho do despertar arcano. Alguns já sentem o chamado da energia, mas não possuem controle ou clareza sobre ela. Interessante.

Ela se aproximou de Vivian, que a olhou com grandes olhos curiosos. — A Runa da Bruma é Hierárquica, não elemental. Seu potencial é diferente, mais sutil. Ilusão, ocultação... um caminho fascinante. — Ela se voltou para Lucius e Maria. — Ela é muito jovem para treinamento formal, obviamente. Mas podemos incentivar a sensibilidade à mana e o desenvolvimento inicial dos veios de mana de forma lúdica. Se permitirem, posso criar algumas atividades. E Elian... — ela olhou para o neto — ...você pode ajudar. Sua presença calma, sua experiência em sentir a mana, pode ser um guia para ela.

Elian pareceu surpreso com a sugestão, mas a ideia de ajudar a irmã pareceu agradá-lo. Lucius e Maria concordaram prontamente, felizes com a perspectiva de nutrir o potencial de Vivian de forma gentil.

Assim, ficou decidido. O treinamento intensivo começaria em breve, mas antes, haveria um interlúdio, dias dedicados não à forja do poder, mas ao calor do lar.

★★★

Os dias seguintes foram... diferentes. A sombra do treinamento iminente de Mestra Margareth ainda pairava, mas a decisão de fazer uma pausa trouxe um alívio palpável, uma chance de respirar e me reconectar com a vida fora da busca incessante por poder.

Dediquei parte do meu tempo a Vivian. Seguindo a sugestão de Margareth, tentei ajudá-la a entender sua Runa da Bruma. Não era fácil. A Bruma era sutil, quase etérea, e Vivian, com seus quatro anos, tinha a capacidade de concentração de um esquilo agitado. Mas tentamos. Sentávamos no jardim, e eu a guiava em exercícios de respiração, tentando fazê-la sentir a energia dentro de si, aquela sensação que ela descreveu como “brilhante” e “fria”.

— Fecha os olhos, Vivi — eu dizia, tentando manter a voz calma. — Respira devagar... Sente o quentinho do sol na pele? Agora tenta sentir algo diferente, lá dentro da sua mãozinha. Lembra da luzinha?

Ela apertava os olhos com força, franzindo a testa. Às vezes, uma leve ondulação translúcida aparecia por um segundo, como um suspiro de névoa, antes de desaparecer. Ela ficava frustrada por não conseguir segurá-la.

— Não vai, Eli! — reclamava, abrindo os olhos.

— Tudo bem — eu respondia, lembrando da minha própria frustração com Terra e Ar. — É como aprender a andar. No começo a gente cai, mas depois consegue. A sua Runa é especial, Vivi. Ela gosta de brincar de esconde-esconde.

Inventei jogos. Pedia para ela tentar “esconder” um pequeno objeto com a névoa (o que nunca funcionava, mas a mantinha entretida) ou para tentar sentir onde eu estava de olhos fechados, imaginando que a Bruma a ajudava a “ver” sem os olhos. Eram tentativas lúdicas, mais para familiarizá-la com a ideia de ter um poder interior do que para realmente treiná-la. Mas nesses momentos, sentados juntos na grama, rindo de suas tentativas frustradas ou de minhas explicações inventadas, eu sentia uma conexão simples e pura com minha irmãzinha, algo que o peso das minhas memórias e a pressão do futuro não conseguiam obscurecer totalmente.

Passei tempo com minha mãe também. Ajudei-a no jardim de ervas, ouvindo-a explicar as propriedades de cada planta com uma paciência infinita. Sentei-me com ela na biblioteca enquanto ela lia, apenas apreciando o silêncio confortável e o cheiro de livros antigos. Ela não me pressionava com perguntas sobre o futuro ou o treinamento; apenas me oferecia sua presença calma e constante, um porto seguro em meio às minhas próprias tempestades internas. Era nesses momentos simples que eu me sentia mais como um garoto de seis anos, e menos como a alma antiga e cansada que habitava este corpo.

Alguns dias depois, minha mãe sugeriu uma visita à vila principal do nosso feudo. Era algo que fazíamos ocasionalmente, mas que ganhava um novo significado com as palavras de meu pai sobre conhecer a comunidade.

Fomos os três: minha mãe, Vivian e eu. A vila ficava a uma curta cavalgada da mansão. Ao nos aproximarmos, notei imediatamente a diferença. A última vez que estivemos ali, talvez um ano atrás, era um lugar sonolento, com cerca de quatrocentas almas. Agora, parecia visivelmente maior, mais movimentada. Novas casas haviam sido construídas na periferia, a praça central estava mais cheia, e o som de conversas e atividades era mais vibrante.

— A vila cresceu, mãe — comentei, enquanto caminhávamos pela rua principal de terra batida.

— Sim, querido — respondeu ela, sorrindo. — Seu pai tem trabalhado muito para melhorar as condições do feudo, atraindo novos artesãos e famílias. A segurança que ele proporciona e a justiça que ele aplica têm tornado nossas terras um lugar desejável para se viver. Acho que já passamos dos seiscentos habitantes.

Seiscentos. Um aumento significativo. Isso significava mais pessoas para proteger, mais vidas dependendo da força e da sabedoria da Casa Freimann.

Fomos recebidos calorosamente. As pessoas nos cumprimentavam com respeito, mas também com uma familiaridade que não existia na capital. Eram nossos vizinhos, nossos trabalhadores, as pessoas que formavam a espinha dorsal do feudo. Minha mãe parava para conversar com vários deles, perguntando sobre suas famílias, suas colheitas, seus negócios.

Encontramos o chefe da vila, um homem idoso chamado Omar, de rosto curtido pelo sol e mãos calejadas pelo trabalho, mas com olhos astutos e um sorriso fácil. Ele nos recebeu com uma reverência respeitosa, mas sem subserviência.

— Lady Maria, Jovem Lorde Elian, pequena Senhorita Vivian! Que prazer tê-los na vila hoje! — disse ele, sua voz rouca.

— É bom vê-lo também, Omar — respondeu minha mãe. — A vila parece próspera.

— Graças ao trabalho do Lorde Baronete e à proteção de sua Casa, senhora. Temos tido bons tempos.

Enquanto eles conversavam, notei um garoto, talvez um ou dois anos mais velho que eu, parado um pouco atrás de Omar. Tinha cabelos castanhos despenteados e olhos curiosos, mas sua postura era rígida, quase formal demais.

— Ah, este é meu neto, Kael — disse Omar, notando meu olhar. — Kael, cumprimente o Jovem Lorde.

O garoto deu um passo à frente e fez uma reverência desajeitada. — Jovem Lorde Elian. É uma honra.

Sua formalidade pareceu forçada, quase desconfortável. Sorri para ele. — Olá, Kael. Não precisa ser tão formal. Somos quase vizinhos, não é?

Kael pareceu surpreso, piscando os olhos. Um leve rubor subiu por seu pescoço. — Ah... sim, Jovem Lorde. Quer dizer, Elian.

— Isso, Elian está ótimo — confirmei. — Você mora aqui na vila?

Ele assentiu, relaxando um pouco. — Sim. Meu avô está me ensinando a cuidar dos registros da vila.

Conversamos por mais alguns minutos sobre coisas triviais – os melhores lugares para encontrar frutas silvestres, um cachorro que tinha tido filhotes recentemente. Era uma interação normal, simples, muito diferente das intrigas e formalidades da nobreza.

Antes de irmos embora, passamos por uma pequena barraca que vendia doces caseiros. Vivian apontou animadamente para um doce de mel e nozes.

— Eli, olha! Doce!

Sorri e comprei um para ela, que o devorou com satisfação. Enquanto ela lambuzava os dedos, ouvi a voz de meu pai nos chamando à distância. Ele tinha vindo nos encontrar.

— Maria! Elian! Vivian! Hora de voltar para casa!

Acenamos para Omar e Kael e seguimos ao encontro de meu pai, deixando para trás o burburinho crescente da vila.

Juntamo-nos a meu pai, que nos esperava perto da saída da vila. Ele sorriu ao ver Vivian com o rosto e as mãos pegajosas de mel.

— Vejo que a visita foi doce, pelo menos para alguns — brincou ele, limpando o rosto de Vivian com um lenço.

— Foi bom, Lucius — disse minha mãe. — Relembramos velhos conhecidos e vimos como a vila está crescendo.

— Fico feliz — respondeu meu pai. Ele se virou para mim, seu olhar encontrando o meu. Havia um brilho familiar ali, o mesmo que ele tinha quando falava sobre treinamento ou estratégia, mas misturado com algo mais leve. — E você, Elian? Gostou do passeio?

— Sim, pai. Foi... normal — respondi, e a palavra pareceu estranhamente reconfortante.

Ele assentiu, parecendo satisfeito. — Ótimo. Porque amanhã, se o tempo permitir, pensei em algo um pouco diferente. O que me diz de testarmos suas habilidades de rastreamento e, quem sabe, sua conexão com a Terra e o Ar, de uma forma mais... prática? Você, eu e as florestas. Pronto para uma caçada ao amanhecer?

O convite, feito ali, sob o sol poente, com o cheiro de terra e vida da vila ao nosso redor, pareceu a continuação perfeita daquele dia de pausa. A perspectiva de passar tempo com meu pai, de aplicar minhas habilidades de forma útil e sutil, longe da pressão direta de Mestra Margareth, era exatamente o tipo de equilíbrio que eu precisava.

— Sim, pai — respondi, um sorriso se formando em meus lábios. — Estou pronto.

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