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Chapter 27 - Barreiras Quebradas.

Velunor surgiu no horizonte como uma promessa e uma ameaça. Suas muralhas maciças, coroadas por torres que arranhavam as nuvens, eram um testemunho do poder e da história do reino. Para a pequena Vivian Freimann, de quatro anos, espremida na janela da carruagem, a visão era de puro assombro. Seus olhos azuis se arregalaram diante da escala monumental da cidade que se desdobrava à frente, um formigueiro de telhados, estandartes e movimento incessante.

— É tão grande! — sua voz infantil ecoou dentro do veículo, maravilhada. — Maior que todas as casas juntas!

Maria, sua mãe, sorriu com ternura, mas seus próprios olhos carregavam uma sombra de apreensão enquanto observava a grandiosidade caótica da capital. Lucius, o Baronete Freimann, mantinha uma expressão séria, os ombros tensos sob o peso da responsabilidade e da recente violência na estrada. Elian, sentado ao lado da irmã, permanecia em silêncio, o olhar fixo na cidade, mas sua mente vagava por corredores mais sombrios, o peso da lâmina ainda fantasmagoricamente presente em sua mão.

À medida que se aproximavam do Portão do Dragão, o principal acesso à cidade, a maravilha de Vivian deu lugar a um leve tremor de medo. O nome do portão e, mais ainda, o imenso dragão de pedra esculpido no arco sobre a entrada, com suas asas abertas e garras ameaçadoras, trouxeram de volta a conversa sobre as criaturas lendárias. Ela se encolheu um pouco no assento, agarrando a mão de Elian.

— Aquele... aquele é o dragão de verdade, Eli? — sussurrou ela, os olhos fixos na escultura imponente.

Elian, arrancado de seus pensamentos pela pequena mão que apertava a sua, olhou para a irmã e depois para o dragão de pedra. Forçou um pequeno sorriso. — Não, Vivi. É só uma estátua. O brasão do Rei. Lembra? Como o nosso tem os cajados e a espada.

A explicação pareceu acalmá-la um pouco, embora ela não soltasse sua mão enquanto a carruagem avançava lentamente na fila para a inspeção. A Guarda Real, impecável em suas armaduras prateadas e azuis com o dragão real no peito, movia-se com eficiência disciplinada, verificando documentos e cargas, suas faces impassíveis sob os elmos.

Quando chegou a vez da comitiva Freimann, Lucius apresentou seus documentos ao oficial da guarda. O Capitão Borin, montado ao lado da carruagem, fez um breve relato sobre o ataque sofrido na estrada e indicou o bandido amarrado que um de seus soldados escoltava.

— Salteadores de estrada, oficial — explicou Lucius, a voz firme. — Cinco deles. Perdemos um homem. Este é o único sobrevivente que capturamos. Acreditamos que um deles era um Espadachim Arcano, embora de baixo nível.

O oficial da guarda ergueu uma sobrancelha, seu olhar se tornando mais aguçado ao examinar o prisioneiro e depois a comitiva. A menção de um Espadachim Arcano entre bandidos comuns era incomum. Ele fez algumas perguntas rápidas sobre o local do ataque e a descrição dos outros bandidos, anotando as respostas em uma prancheta.

— Entreguem o prisioneiro aos meus homens, Baronete — ordenou o oficial. — Ele será interrogado. A Guarda investigará o incidente. Sejam bem-vindos a Velunor. Que sua estadia seja segura.

Com um aceno formal, o oficial liberou a passagem. Os soldados Freimann entregaram o bandido à Guarda Real, e a carruagem finalmente atravessou o Portão do Dragão, entrando oficialmente na capital do reino. O barulho da cidade envolveu-os imediatamente – um zumbido constante de vozes, cascos, rodas e comércio – muito mais intenso do que qualquer coisa que Elian ou Vivian já tivessem experimentado.

A carruagem Freimann navegou pelas ruas largas e movimentadas da capital, ladeadas por edifícios altos e imponentes, lojas com vitrines coloridas e uma torrente de pessoas de todas as classes sociais. Seguindo as instruções recebidas no portão, dirigiram-se a um ponto de encontro combinado em um dos distritos comerciais mais abastados da cidade, perto de uma praça conhecida por suas lojas de artigos finos e artesanato.

Ao chegarem à praça designada, avistaram a carruagem dos Von Stein, inconfundível com sua madeira escura polida e o brasão do águia dourada. Estava parada em frente a uma loja com uma fachada elegante que exibia tecidos luxuosos. Ao lado da carruagem, aguardavam o Conde Albert Von Stein e sua filha, Isabelle, conhecida por todos como Belle.

As duas comitivas pararam, e os cocheiros abriram as portas. Lucius desceu primeiro, seguido por Maria, que ajudou Vivian e Elian. Do outro lado, o Conde Albert, um homem de porte nobre e expressão geralmente austera, mas hoje com um leve sorriso de boas-vindas, adiantou-se.

— Baronete Freimann, Senhora Maria. Sejam bem-vindos a Velunor — saudou Albert, sua voz ressoando com a autoridade tranquila de um Conde de Sangue-Puro. Ele fez uma leve inclinação de cabeça, um gesto formal entre nobres de diferentes hierarquias.

— Conde Von Stein — respondeu Lucius, retribuindo a inclinação com o respeito devido. — Agradecemos a recepção. A viagem foi... longa.

Havia uma hesitação quase imperceptível na voz de Lucius ao mencionar a viagem, um detalhe que não passou despercebido por Albert, cujos olhos azuis e penetrantes eram conhecidos por sua perspicácia. Maria cumprimentou o Conde com um sorriso cortês, mas seus olhos buscaram instintivamente os de Elisabeth Von Stein, a Condessa, que descia da carruagem Stein naquele momento, uma figura elegante e composta.

Enquanto os adultos trocavam as saudações formais, os olhares das crianças se cruzaram. Belle, com seus cabelos ruivos presos em uma trança prática e os olhos âmbar brilhantes, observou Elian. Ele estava parado ao lado de seu pai, mais quieto do que o normal, o olhar distante e a postura tensa. Quando seus olhos se encontraram, ele apenas deu um aceno curto, quase imperceptível, antes de desviar o olhar para os paralelepípedos da praça.

Belle franziu a testa levemente. Estranho. Elian, apesar de sua seriedade crescente durante os treinos, nunca fora seco ou distante. Havia sempre uma intensidade em seu olhar, uma competitividade latente ou, às vezes, uma curiosidade silenciosa. Agora, ele parecia envolto em uma névoa, distante e fechado. O que teria acontecido?

Sua atenção foi desviada para a conversa dos adultos. A Condessa Elisabeth, após cumprimentar Maria calorosamente, notou a expressão cansada no rosto da amiga.

— Maria, querida, você parece exausta. A viagem foi muito difícil? — perguntou Elisabeth, a preocupação genuína em sua voz.

Maria forçou um sorriso. — Tivemos... um contratempo na estrada, Elisabeth. Um ataque de bandidos.

Um silêncio tenso caiu sobre o grupo. Albert e Elisabeth trocaram um olhar rápido. Ataques em estradas principais, especialmente a comitivas nobres, não eram comuns perto da capital.

— Bandidos? Estão todos bem? Houve feridos? — perguntou Albert, a formalidade dando lugar à preocupação direta.

— Estamos todos bem, felizmente — respondeu Lucius, o tom controlado. — Meus homens lidaram com a situação. Perdemos um guarda, Harlon, e tivemos dois feridos, mas nada grave. Capturamos um dos agressores, que já foi entregue à Guarda Real no portão. Aparentemente, havia um Espadachim Arcano entre eles.

A revelação sobre o Espadachim Arcano fez Belle prender a respiração por um instante. Isso explicava a tensão, o cansaço nos rostos de Lucius e Maria, e talvez... talvez explicasse o comportamento estranho de Elian. Enfrentar um usuário de artes arcanas, mesmo um fraco, em um ataque surpresa na estrada... devia ter sido assustador. Ela sentiu uma pontada de empatia por ele, imaginando o medo que ele poderia ter sentido, preso na carruagem durante a luta.

— Um Espadachim Arcano entre salteadores? Isso é preocupante — murmurou Albert, a testa franzida em pensamento. — Contarei os detalhes quando estivermos em um lugar mais apropriado, Conde — disse Lucius, lançando um olhar discreto para as crianças. — Há mais a ser dito.

Belle percebeu o olhar e entendeu. Eles não queriam discutir a violência na frente dela, de Elian e da pequena Vivian. Mas ela já sabia o suficiente para entender que algo sério havia acontecido, algo que abalara profundamente a família Freimann e, especialmente, Elian.

Albert Von Stein, percebendo o cansaço da família e a necessidade de um ambiente seguro para discutir o ocorrido, interveio com sua habitual praticidade nobre.

— Lucius, Maria, não faz sentido procurarem por uma estalagem agora, especialmente depois do que passaram. A Mansão Stein está à disposição de vocês durante sua estadia em Velunor. Temos espaço de sobra, e será mais... conveniente para todos nós nos prepararmos para a Apresentação.

A oferta era generosa, mas também sublinhava a diferença entre as casas. Os Von Stein, como uma das famílias de Sangue-Puro mais influentes, possuíam uma residência na capital; os Freimann, uma casa nobre arcana de menor expressão, não tinham tal luxo. Lucius hesitou por um momento, talvez por orgulho ou por não querer impor, mas o pensamento de procurar acomodações adequadas e seguras para sua família, especialmente com Elian tão abalado e após um ataque, tornou a decisão clara.

— Agradeço imensamente a gentileza, Conde. Aceitamos sua oferta. Seria um grande alívio — respondeu Lucius, com um leve aceno de cabeça.

— Excelente — disse Albert, satisfeito. — Nossas carruagens podem seguir juntas. A propósito, imagino que a Margareth não tenha viajado com vocês?

Lucius balançou a cabeça. — Não. Margareth preferiu vir antes. Ela chegou a Velunor há dois dias para tratar de alguns assuntos pessoais antes da Apresentação.

— Compreensível. Margareth sempre teve sua própria agenda — comentou Albert com um leve sorriso, um raro vislumbre de familiaridade por trás da fachada de Conde. — Pois bem, vamos então. A Mansão não está longe daqui.

As duas carruagens seguiram juntas pelas ruas movimentadas, afastando-se do burburinho comercial e entrando em um distrito residencial mais tranquilo e aristocrático. As ruas eram mais largas, ladeadas por árvores bem cuidadas e muros altos que escondiam propriedades opulentas. Elian observava pela janela, mas a grandiosidade das mansões que passavam mal registrava em sua mente preocupada. Belle, na outra carruagem, também observava, mas seus pensamentos estavam focados em Elian e no mistério por trás de seu comportamento.

A Mansão Stein surgiu ao final de uma rua arborizada, imponente até mesmo para os padrões do distrito. Era uma construção de pedra clara com múltiplos andares, janelas altas e um telhado de ardósia escura. O portão de ferro forjado, ostentando a águia da família, abriu-se com um rangido suave para permitir a passagem das carruagens para um pátio interno espaçoso, pavimentado com pedras lisas. Criados uniformizados apressaram-se em atender as famílias, ajudando-as a descer e cuidando das bagagens e dos cavalos com eficiência silenciosa.

O interior da mansão era tão impressionante quanto o exterior: mármore polido no chão, tapeçarias ricas nas paredes, móveis elegantes e uma sensação geral de riqueza e poder estabelecido há gerações. Era um mundo à parte da relativa simplicidade da propriedade Freimann.

— Sintam-se em casa — disse a Condessa Elisabeth com um sorriso acolhedor, enquanto um mordomo supervisionava a organização. — Os quartos de hóspedes estão preparados. Descansem um pouco da viagem. Podemos conversar com mais calma depois.

Maria agradeceu, visivelmente aliviada por estar em um ambiente seguro e confortável. Vivian, inicialmente intimidada pela escala do lugar, logo se distraiu com um pequeno cachorro de colo que veio cheirá-la curiosamente. Lucius trocou um olhar significativo com Albert, indicando que a conversa sobre o incidente na estrada precisava acontecer logo.

Elian, no entanto, mal registrou as gentilezas ou o luxo ao redor. Assim que um criado indicou o quarto que lhe fora designado em uma ala mais tranquila da mansão, ele murmurou uma desculpa e se dirigiu para lá, buscando refúgio da interação social e do peso em sua mente. O quarto era espaçoso e bem mobiliado, com uma grande janela que dava para um jardim interno bem cuidado, mas ele apenas fechou a porta atrás de si e sentou-se na beira da cama macia, o olhar perdido no vazio.

Enquanto isso, no salão principal, após garantir que as crianças estavam sendo acomodadas, Lucius finalmente pôde relatar os detalhes do ataque a Albert e Elisabeth, que os ouviram com expressões sérias.

— ...foi então que o Espadachim Arcano, mesmo rendido, usou o que parecia ser uma versão desesperada do Passo Etéreo para atacar a carruagem onde Maria e Vivian estavam — contou Lucius, a voz baixa e tensa, revivendo o momento de horror. — Eu não teria chegado a tempo. Nenhum de nós teria.

Albert e Elisabeth prenderam a respiração. Belle, que estava descendo a grande escadaria após deixar seus pertences no quarto, parou no meio do caminho, escondida pela curva da balaustrada, ao ouvir a tensão na voz de Lucius. Ela sabia que não deveria escutar, mas a menção ao Passo Etéreo e o tom grave a prenderam ali.

— Mas ele foi detido? — perguntou Albert, a preocupação evidente.

Lucius fez uma pausa, o olhar encontrando o de Maria antes de continuar. — Sim. Ele foi detido. Por Elian.

Houve um silêncio chocado. Albert e Elisabeth encararam Lucius, incrédulos.

— Elian? Mas... como? — gaguejou Elisabeth.

— Ele saiu da carruagem no momento em que o ataque aconteceu. O bandido tentou passar por ele para alcançar Maria e Vivian. Elian... ele usou a espada curta que lhe dei, aquela com as runas de fogo. Ele o empalou.

Belle levou a mão à boca, os olhos arregalados. Elian? O garoto quieto e intenso com quem treinava, que tinha dificuldade em acompanhar sua velocidade, havia enfrentado um Espadachim Arcano adulto e o... matado?

— Ele... matou o homem? — A voz de Albert era quase um sussurro.

— Sim — confirmou Lucius, o peso daquelas palavras pairando no ar. — A espada reagiu à energia de Elian, as runas de fogo foram ativadas. O homem... queimou por dentro enquanto morria empalado. Foi... brutal.

Belle sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Agora tudo fazia sentido. O olhar distante de Elian, seu silêncio, a tensão que emanava dele. Não era apenas o susto do ataque; era o choque, o peso de ter tirado uma vida de forma tão violenta. Ele, com apenas seis anos, havia matado um homem para proteger sua mãe e irmã. A ficha caiu com força, substituindo a curiosidade por uma onda avassaladora de compreensão e uma profunda e inesperada preocupação por ele.

Escondida na curva da escadaria, Belle permaneceu imóvel por um longo momento após os adultos se dispersarem, o eco das palavras de Lucius reverberando em sua mente. Elian... matara um homem. Um Espadachim Arcano. A imagem era difícil de conciliar com o garoto que ela conhecia, o garoto com quem competia nos treinos, que ficava frustrado com sua própria lentidão, mas cujos olhos dourados às vezes brilhavam com uma intensidade que ia além da simples concentração.

Uma onda de emoções conflitantes a invadiu. Choque, incredulidade, um respeito relutante pela coragem dele, e, acima de tudo, uma preocupação profunda. Ele estava tão quieto, tão distante... Carregar um fardo como aquele, especialmente aos seis anos, devia ser esmagador. Lembrou-se da própria pressão que sentia como herdeira dos Von Stein, a expectativa de ser forte, de dominar a espada e as artes arcanas de sua linhagem. Mas aquilo era diferente. Aquilo era sangue, morte, a crueza de um confronto real.

Deveria ir falar com ele? Uma parte dela hesitou. Nobres, especialmente os de Sangue-Puro como ela, eram ensinados a manter a compostura, a não se intrometer em assuntos alheios, a lidar com suas próprias batalhas internas em silêncio. Mas Elian... ele não era apenas outro nobre. Ele era... diferente. Ele a tratava como uma igual no treino, mesmo sendo mais novo e de uma casa menos proeminente. Ele não a bajulava nem a temia por ser uma Von Stein. Ele apenas... competia. E, estranhamente, isso o tornara a pessoa mais próxima de um amigo que ela tinha.

Tomando uma decisão, Belle desceu o restante da escada silenciosamente e se dirigiu à ala de hóspedes onde Elian estava. Parou em frente à porta do quarto dele, respirou fundo e bateu levemente.

Não houve resposta.

Ela bateu novamente, um pouco mais forte. — Elian? Sou eu, Belle. Posso entrar?

A voz dele veio abafada de dentro, desprovida de qualquer emoção. — Vá embora.

Belle hesitou, mas a frieza na voz dele apenas reforçou sua preocupação. Ela girou a maçaneta; a porta estava destrancada. Empurrou-a suavemente e entrou.

Elian estava sentado na beira da cama, exatamente como ela o imaginara, encarando a parede oposta. Ele nem se virou quando ela entrou. A espada curta rúnica estava pousada na mesa de cabeceira, limpa, mas parecendo irradiar uma aura sombria no quarto silencioso.

— Eu disse para ir embora — repetiu ele, a voz ainda monótona.

— Eu ouvi — respondeu Belle, fechando a porta atrás de si e se aproximando alguns passos. — Mas não vou. Você não parece bem.

Ele finalmente virou a cabeça, e o olhar que encontrou o dela a fez recuar um passo instintivamente. Não era o olhar intenso do treino, nem o olhar distante de mais cedo. Era um olhar frio, quase vazio, mas com uma sombra de algo perigoso por baixo. Algo que lembrava a forma como ele olhara para o bandido antes de... antes.

— E o que você tem a ver com isso, Von Stein? — A formalidade no uso do sobrenome dela foi como um tapa. — Volte para seus pais. Não preciso da sua pena.

— Não é pena — retrucou Belle, a teimosia natural vindo à tona, misturada à preocupação. — É... eu só... fiquei preocupada. Ouvi o que seu pai contou. Sobre o ataque. Sobre o que você teve que fazer.

Elian se levantou abruptamente, a tensão emanando dele em ondas palpáveis. — Você estava espionando? Ótimo. Então já sabe. Fiz o que tinha que ser feito. Fim da história. Agora saia.

Ele estava se fechando, erguendo muralhas ao redor de si. Belle podia sentir isso. E, por alguma razão, a ideia de deixá-lo sozinho com aquela escuridão que ela vislumbrava em seus olhos pareceu errada, inaceitável.

— Não é o fim da história, Elian! — disse ela, a voz mais alta do que pretendia. — Você matou um homem! Isso não é algo que simplesmente acontece e acaba! Como você está se sentindo?

— Como eu estou me sentindo? — Ele soltou uma risada curta e amarga, desprovida de humor. — Eu estou ótimo! Protegi minha mãe e minha irmã. O desgraçado teve o que mereceu. É isso que você queria ouvir? Que estou feliz por ter queimado alguém vivo?

A crueza das palavras a chocou, mas ela não recuou. Viu a dor por trás da raiva, a confusão por trás da frieza.

— Não! Eu só... eu não quero que você passe por isso sozinho — disse Belle, a voz agora mais suave, mas firme. Ela deu mais um passo à frente. — Elian, nós... nós treinamos juntos. Brigamos, competimos... mas... você é a primeira pessoa... — ela hesitou, as palavras difíceis de admitir em voz alta — ...a primeira pessoa que não me trata diferente só porque sou uma Von Stein. Que não se aproxima por interesse ou por medo. Você só... está lá. E isso... isso é importante para mim. Você é meu primeiro amigo de verdade, eu acho.

A confissão pareceu atravessar a armadura de Elian. Ele a encarou, a frieza em seus olhos vacilando, substituída por uma surpresa atordoada. Amigo? Ele nunca pensara nela dessa forma. Rival, parceira de treino, alguém que o desafiava... mas amiga?

Lembrou-se das palavras de Vovó Margareth, ditas há muito tempo, sobre ele não estar sozinho em sua jornada. Seria isso? Alguém que via além de suas habilidades ou de seu potencial, alguém que se importava com ele, Elian?

— Eu... — começou ele, a voz falhando.

Belle se aproximou mais, parando a poucos passos dele. — Eu sei que sou dois anos mais velha, e de uma casa diferente... mas isso não importa. O que importa é que você passou por algo terrível. E não precisa fingir que está tudo bem. Não comigo. Você não está sozinho nisso, Elian.

A sinceridade nos olhos âmbar dela, a vulnerabilidade inesperada em sua confissão sobre amizade, desarmaram-no completamente. A tensão em seus ombros diminuiu, e a fachada fria começou a ruir.

— Eu não... eu não me arrependo de tê-lo matado, Belle — admitiu ele, a voz baixa, quase um sussurro. — Ele ia machucar minha mãe, minha irmã. Eu faria de novo. Mas... a forma como aconteceu... a facilidade... o fogo... — Ele estremeceu, abraçando os próprios braços. — Eu senti... frio por dentro. Como se uma parte de mim estivesse apenas observando, aprovando. Eu tenho medo, Belle. Medo de que essa... essa coisa que senti... seja quem eu realmente sou. Medo de me tornar algo ruim, como... como outros que conheci.

Ele não falou de Rodrick, mas a sombra daquela vida estava implícita em seu medo. Belle não podia entender a referência completa, mas entendeu a essência do temor dele.

Ela não hesitou. Colocou a mão gentilmente no braço dele. — Você não vai se tornar algo ruim, Elian. Você fez aquilo para proteger quem ama. Isso não é maldade, é coragem. É amor. O que você sentiu... talvez tenha sido o choque, ou a força que precisou encontrar naquele momento. Mas não define você.

Ela olhou nos olhos dele, a convicção firme em seu rosto. — Eu vi você nos treinos. Vejo como você se esforça, como se preocupa com sua família. Isso é quem você é. E eu... eu tenho orgulho de você. Por ter sido tão corajoso. Por ter protegido elas.

As palavras dela, a aceitação, o orgulho em vez de horror ou medo... foram como um bálsamo para a ferida aberta em sua alma. Ele não estava sozinho. Alguém entendia, ou pelo menos tentava entender, e não o julgava pela escuridão que ele temia carregar.

No meio daquele momento carregado de emoção e vulnerabilidade compartilhada, a porta do quarto se abriu com um rangido suave, e uma pequena figura surgiu na soleira. Era Vivian, os olhos azuis curiosos percorrendo o quarto antes de pousarem em Elian e Belle, parados tão próximos.

— Eli? — chamou ela, a voz infantil cortando a tensão. Ela correu para dentro, alheia à atmosfera pesada, e se jogou nas pernas de Elian. — Mamãe disse que você estava descansando. Você tá triste, Eli?

A visão da irmã, tão pequena, tão inocente, tão alheia ao horror que ele havia cometido para protegê-la, foi a gota d'água para Elian. A compreensão de Belle, o orgulho dela, haviam começado a rachar sua fachada, mas a presença pura e simples de Vivian a demoliu completamente.

As lágrimas que ele vinha segurando voltaram com força. Ele se ajoelhou, envolvendo Vivian em um abraço apertado, enterrando o rosto em seus cabelos macios. Os soluços sacudiram seu corpo pequeno, não mais de alívio ou medo, mas de uma emoção crua e avassaladora – a dor pelo passado que não podia mudar, a gratidão pelo presente que quase perdera, e o amor desesperado por aquela pequena vida em seus braços.

Vivian, embora confusa com as lágrimas do irmão mais velho, não se assustou. Ela apenas o abraçou de volta com seus bracinhos curtos e começou a afagar a cabeça dele com a mãozinha, um gesto instintivo de consolo que ela provavelmente via a mãe fazer.

— Não chola, Eli — disse ela, a pronúncia ainda infantil. — Eu amo você. Muito, muito!

As palavras simples, ditas com a sinceridade absoluta de uma criança, atingiram Elian como nenhuma outra. Ele ergueu a cabeça, o rosto molhado de lágrimas, e olhou para a irmã, depois para Belle, que observava a cena com uma expressão suave e compreensiva.

— Obrigado, Belle — conseguiu dizer Elian, a voz embargada, mas sincera. — Por... por tudo.

Belle apenas assentiu, um pequeno sorriso nos lábios. — Não precisa agradecer. Amigos servem para isso, não é?

Elian abraçou Vivian mais uma vez, sentindo o calor reconfortante da inocência dela, e pela primeira vez desde o ataque na floresta, uma pequena centelha de paz começou a se acender em meio à escuridão de seus pensamentos.

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Após aquela conversa no quarto, algo mudou entre Elian e Belle. A barreira da rivalidade formal, embora ainda presente nos treinos futuros, foi permeada por um entendimento mais profundo, um respeito mútuo nascido da vulnerabilidade compartilhada. Elian, com o apoio silencioso de Belle e o amor incondicional de sua família, começou lentamente a processar o trauma da estrada. O peso em seus ombros não desapareceu da noite para o dia, mas a sensação de isolamento diminuiu, substituída pela crescente certeza de que, independentemente dos desafios que Velunor e a Apresentação Quinquenal trouxessem, ele não os enfrentaria sozinho.

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