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Chapter 23 - Lâminas que Dançam e Ecos de Cinzas

Dois dias haviam se passado desde a noite em que a mansão do Barão Valentine fora consumida por um fogo inexplicável, um evento que pairava como uma nuvem carregada sobre as conversas sussurradas da nobreza local. No entanto, nos campos de treinamento da propriedade Stein, a rotina seguia seu curso implacável, alheia aos dramas que se desenrolavam nas sombras.

A manhã estava clara e fria, o sol da primavera ainda lutando para aquecer o ar. No centro do pátio de treinamento, Belle Von Stein, com seus vibrantes cabelos ruivos presos em uma trança prática e vestindo um traje de treino justo, movia-se com uma agilidade surpreendente para seus cinco anos. Diante dela, seu pai, o Conde Albert Von Stein, observava cada movimento com a atenção minuciosa de um mestre de armas e a preocupação de um pai.

Belle empunhava uma espada curta de treino, semelhante à que Elian recebera, mas adaptada ao seu tamanho e estilo. A lâmina sibilava no ar enquanto ela executava uma sequência de golpes e paradas contra um boneco de treino reforçado com couro e metal.

— Mais fluidez, Belle! — A voz de Albert era firme, mas paciente. — A transição entre a Estocada da Garça e a Defesa da Serpente foi hesitante. Lembre-se, a energia arcana não flui apenas para a lâmina no ataque, mas também fortalece sua postura na defesa. Visualize o fluxo.

Belle parou, respirando fundo, a ponta da espada apontada para o chão. Pequenas gotas de suor brilhavam em sua testa.

— Eu tento, papai, mas às vezes... parece que a energia emperra quando preciso mudar rápido.

Albert aproximou-se, pegando sua própria espada de treino, uma lâmina mais longa e pesada.

— Isso é normal no início. A disciplina do Espadachim Arcano reside justamente em harmonizar o corpo físico com o fluxo energético. Não basta querer que a energia vá para a lâmina; você precisa “sentir” o caminho, guiá-la com sua intenção e respiração. — Ele demonstrou a transição que ela errara, seus movimentos eram uma mistura de precisão marcial e graça quase etérea. — Viu? O quadril gira “antes” do braço recuar para a defesa, criando um vácuo momentâneo que puxa a energia do seu núcleo para a guarda. Tente novamente.

Belle assentiu, concentrando-se. Ela refez a sequência, e desta vez, a transição foi mais suave, quase imperceptível. Um leve brilho âmbar percorreu a lâmina quando ela assumiu a postura defensiva.

— Melhor! — aprovou Albert. — Agora, vamos trabalhar na sua Arte de Aprimoramento. Lembre-se do “Passo Etéreo”.

Ele se afastou alguns passos. — Ative-o e tente me tocar com a ponta da espada antes que eu conte até três.

Belle fechou os olhos por um instante. Murmurou palavras em uma língua antiga, quase inaudíveis, enquanto traçava mentalmente runas simples em seus tornozelos e coxas. Uma leve aura prateada envolveu suas pernas, quase invisível sob a luz do sol.

— “Passo Etéreo” — sussurrou ela, e seus olhos se abriram, focados em seu pai.

— Um... — começou Albert.

No instante seguinte, Belle desapareceu de onde estava. Não foi um teleporte, mas um movimento tão rápido e fluido que pareceu uma ilusão. Ela surgiu quase instantaneamente ao lado de Albert, a ponta de sua espada a centímetros do braço dele.

— Dois. — Albert sorriu levemente, bloqueando o toque final com um movimento rápido de seu antebraço. — Excelente ativação, Belle. Sua velocidade e controle estão melhorando significativamente.

A aura prateada nas pernas de Belle se dissipou, e ela respirou ofegante, apoiando-se nos joelhos.

— Cansa... muito.

— O “Passo Etéreo” consome bastante energia inicial, pois exige que você force o fluxo arcano diretamente nos músculos e tendões, sobrecarregando-os momentaneamente para obter velocidade explosiva. — explicou Albert, ajudando-a a se recompor. — É uma arte de aprimoramento corporal fundamental para o Espadachim Arcano, permitindo diminuir distâncias ou escapar de situações perigosas. Com o tempo e o fortalecimento da sua Runa, o custo diminuirá e a duração aumentará. O segredo é a eficiência: use apenas a energia necessária, no momento exato. Não a desperdice.

Ele a guiou até um banco próximo. — Por hoje, focamos na fluidez das transições e na ativação do Passo Etéreo. Lembre-se, Belle, ser uma Espadachim Arcana não é apenas sobre força ou velocidade, mas sobre o equilíbrio perfeito entre a disciplina marcial e o controle arcano. Sua lâmina é uma extensão da sua vontade, e seu corpo, o conduíte da sua energia.

Enquanto Belle recuperava o fôlego, absorvendo as palavras do pai, o som de passos apressados no cascalho do pátio chamou a atenção de ambos. Um soldado vestindo a armadura dourada e azul da Casa Stein aproximou-se rapidamente, parando a uma distância respeitosa e fazendo uma saudação.

— Meu Conde — disse o soldado, a voz ligeiramente ofegante. — Trago notícias urgentes da patrulha matinal.

Albert ergueu uma sobrancelha. — Prossiga, Capitão.

— Senhor, a patrulha que enviei para verificar as propriedades a leste, incluindo a do Barão Valentine, como ordenado... encontrou a mansão completamente destruída. Reduzida a cinzas e escombros fumegantes. Não há sinal do Barão ou de qualquer servo. A destruição é... total.

Um silêncio pesado caiu sobre o pátio de treinamento. Belle arregalou os olhos âmbar, olhando do soldado para o pai, a compreensão começando a surgir em seu rosto jovem.

Albert manteve a compostura, seu rosto uma máscara neutra, mas por dentro, uma torrente de pensamentos o invadiu. ”Tão rápido... Margareth não perdeu tempo. Destruição total... ela não deixou margem para dúvidas. A antiga Arquiduquesa ainda possui um poder aterrador quando provocada. Valentine colheu o que plantou ao ameaçar a linhagem dela, mesmo que indiretamente. Agora, cabe a mim garantir que as perguntas certas não sejam feitas.”

Belle, por sua vez, sentiu um arrepio percorrer sua espinha, não de medo, mas de uma admiração temerosa. ”A mansão do Barão... destruída? Aquela noite... a tensão na festa... a forma como a Anciã Margareth olhou para Elian... e depois o Barão... Será que...? Papai disse que ela era poderosa, mas isso...” A imagem da velha senhora, geralmente calma e professoral, sobrepôs-se à ideia de uma força capaz de tamanha destruição, e Belle percebeu que havia muito mais em Margareth Lindemberg do que aparentava.

Albert pigarreou, quebrando o silêncio. — Entendido, Capitão. Uma tragédia, sem dúvida. Provavelmente um incêndio acidental que saiu de controle. Valentine nunca foi conhecido por sua prudência. Organize uma equipe para investigar as ruínas, mas com cautela. Não quero ninguém se ferindo nos escombros instáveis. Reporte qualquer achado diretamente a mim.

— Sim, meu Conde! — O capitão saudou novamente e retirou-se apressadamente.

Albert voltou-se para Belle, colocando uma mão reconfortante em seu ombro.

— O treinamento está encerrado por hoje, querida. Vá descansar e processar suas lições. Temos assuntos a tratar.

Belle assentiu em silêncio, ainda absorvendo a notícia e suas implicações. Ela pegou sua espada de treino e dirigiu-se para dentro do castelo, seus pensamentos girando.

Sozinho no pátio, Albert Von Stein suspirou profundamente. Ele caminhou até seu escritório particular, um cômodo austero, mas funcional. Trancou a porta e dirigiu-se a uma pequena arca de madeira escura em um canto. Abriu-a com uma chave ornamentada, revelando um interior forrado de veludo onde repousava um único objeto: uma esfera de cristal do tamanho de um punho, que pulsava com uma luz interna suave.

Albert pegou a esfera, sentindo seu calor familiar. Era um Comunicador Arcano, uma relíquia rara que permitia a comunicação à distância com outro dispositivo sintonizado. Ele sabia que Margareth possuía o par.

Concentrando sua energia, Albert derramou uma pequena quantidade de mana na esfera. A luz interna intensificou-se, e a superfície do cristal tornou-se turva, como se cheia de fumaça.

— Margareth — chamou ele, sua voz baixa, mas clara. — Preciso falar com você. A notícia chegou.

Um mês se passou desde a destruição da mansão Valentine. As investigações conduzidas pelo Conde Stein, como esperado, não levaram a lugar algum, concluindo oficialmente que se tratara de um trágico incêndio acidental. A nobreza local comentou o ocorrido por alguns dias, mas logo novas fofocas e eventos tomaram o lugar do incidente nas conversas dos salões.

Para Elian, no entanto, aquele mês fora de intensa dedicação aos estudos arcanos sob a tutela rigorosa de Margareth. As revelações sobre sua linhagem e o poder implacável de sua bisavó haviam solidificado sua determinação. Ele mergulhou nos ensinamentos sobre o fluxo de energia, os portões e, principalmente, sobre a verdadeira natureza da Força de Vontade.

Margareth o guiara pelos conceitos abstratos do “Querer” – a intenção pura, o desejo ardente que iniciava todo ato arcano – e da “Consciência” – o pensamento focado, a mente disciplinada que direcionava esse querer. Elian passara incontáveis horas em meditação, aprendendo a sentir a faísca do seu próprio querer e a moldá-la com a clareza de sua consciência, separando-as das emoções turbulentas e dos pensamentos dispersos. Ainda não dominava completamente a união desses elementos com sua Força Vital para formar a verdadeira Força de Vontade, mas já conseguia sentir e direcionar parcialmente o Querer e a Consciência de forma independente. Margareth afirmara que o próximo passo seria começar a aplicar esses princípios fundamentais em exercícios práticos, tecendo as primeiras magias rudimentares com intenção focada, em vez de apenas instinto.

Além disso, conforme prometido por seu pai, aquele fim de semana marcaria o início de seu treinamento de esgrima.

O pequeno pátio nos fundos da modesta casa dos Freimann servia como área de treinamento. Era um espaço simples, com chão de terra batida e alguns alvos de palha desgastados encostados em um muro baixo, muito diferente dos campos bem equipados da propriedade Stein. O sol da manhã lançava longas sombras enquanto Elian, agora com pouco mais de três anos e um mês, segurava a Lâmina Arcana de Treinamento que seu pai lhe dera. A espada curta ainda parecia um pouco grande e desajeitada em suas mãos pequenas, apesar de ter sido dimensionada para ele.

Lucius Freimann estava parado à sua frente, vestindo roupas simples de treino. Sua postura era ereta, e seu olhar, normalmente gentil, agora carregava a seriedade de um instrutor. Ele observou Elian por um momento, avaliando sua postura instintiva.

— A espada não é um brinquedo, Elian — começou Lucius, a voz calma, mas firme. — É uma ferramenta, uma extensão do seu corpo e, eventualmente, da sua vontade. O primeiro passo é aprender a respeitá-la e a segurá-la corretamente.

Ele se aproximou e ajustou a pegada de Elian no cabo de couro trançado.

— As duas mãos, por enquanto. Polegares alinhados ao longo do cabo, não cruzados. Punhos firmes, mas não tensos. Sinta o equilíbrio da lâmina. Ela não deve puxar você para baixo nem parecer leve demais.

Elian tentou ajustar sua pegada, sentindo o peso sólido do aço escuro. Era uma sensação muito diferente da energia sutil que ele manipulava com Margareth.

— Agora, a postura. — Lucius o guiou, posicionando seus pés. — Pés afastados na largura dos ombros, joelhos levemente flexionados. Um pé ligeiramente à frente do outro. Coluna ereta. Ombros relaxados. Olhe para frente, não para a espada ou para seus pés.

Elian tentou manter a posição, mas seus músculos jovens protestaram. Parecia desajeitado, instável.

— É desconfortável no início — disse Lucius, percebendo sua dificuldade. — Seu corpo precisa se acostumar. A esgrima exige disciplina física tanto quanto mental. Você está aprendendo a controlar sua energia com Margareth, a focar sua mente. Aqui, você aprenderá a controlar seu corpo, a mover-se com propósito e equilíbrio.

Ele deu um passo para trás. — O treinamento arcano e o treinamento marcial se complementam, Elian. Ambos exigem foco, disciplina, consciência – consciência da energia ao seu redor e consciência do seu próprio corpo no espaço. Um Arcanista que não domina seu corpo é vulnerável. Um guerreiro que não domina sua mente é imprudente.

“Consciência... Querer...” As palavras de Margareth ecoaram em sua mente. Talvez houvesse mais conexões do que ele imaginava. Focar sua mente para direcionar a energia... focar sua mente para direcionar o corpo e a lâmina...

— Por hoje, vamos focar apenas na postura e no equilíbrio — continuou Lucius, tirando Elian de seus pensamentos. — Quero que você mantenha essa posição por cinco minutos. Concentre-se em sua respiração, sinta o chão sob seus pés, o peso da espada em suas mãos. Se sentir que vai perder o equilíbrio, ajuste seus pés minimamente, mas mantenha a coluna ereta.

Começou o que pareceu uma eternidade. O sol começou a aquecer suas costas, a espada pareceu ficar mais pesada a cada segundo, e seus joelhos tremiam levemente. Ele lutou contra a vontade de se mexer, de olhar para baixo, de simplesmente largar a espada. Lembrou-se das horas de meditação com Margareth, da disciplina necessária para acalmar a mente. Aplicou a mesma lógica agora, focando na respiração, no comando do pai, na sensação física do momento.

Lucius observava em silêncio, corrigindo sua postura ocasionalmente com um toque gentil, mas sem interromper sua concentração. Ele via a luta no rosto do filho, mas também via a determinação férrea que brilhava em seus olhos dourados. Aquele não era um menino comum, e seu treinamento também não seria.

Quando os cinco minutos finalmente terminaram, Lucius deu o comando para relaxar. Elian quase desabou, seus músculos doloridos, mas uma pequena sensação de realização o invadiu. Ele havia conseguido.

— Bom começo, Elian — disse Lucius, um raro traço de orgulho em sua voz. — A disciplina física é construída lentamente, com persistência. Seu exercício para esta semana é praticar essa postura todos os dias, aumentando o tempo gradualmente. Na próxima aula, começaremos com os movimentos básicos de ataque e defesa.

Elian assentiu, ofegante, mas ansioso. O caminho da espada era árduo, mas ele sentia que era necessário. Era mais uma ferramenta, mais um passo para se tornar forte o suficiente para proteger aqueles que amava.

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